segunda-feira, 28 de junho de 2010

QUEM TE MATOU, CAVEIRA? - Recontando Contos Populares

Durante toda esta minha vida ouvi muitos causos. Dos que guardei em mente, tem este que vou reproduzir conforme aconteceu. Foi o seguinte:
Numa tarde de certo dia, deu de acontecer que um caboclo ao passar perto da porteira de um sítio, pôs a atenção numa caveira feia como deve ser a Morte. É comum ouvir que nós, sertanejos, somos um povo muito supersticioso. Mas esse caboclo não tinha "um pingo" de medo; pois se acercou da caveira, deu-lhe um pontapé e caçoou:
— Quem te matou, caveira?
Você calcule qual não foi o espanto do caboclo, quando, com um estalejar dos ossos muito brancos, lavados de chuva e estorricados ao sol, a caveira respondeu:
— Foi a língua.
Lá se foi a coragem do homem. Na mesma hora o caboclo ficou aturdido, se arrepiou todo, tocou no crucifixo que no peito trazia, benzeu-se e se pôs numa carreira despinguelada.  Vencida obra de meia légua, estava no vilarejo; e foi logo botando a "boca no mundo". A história do caboclo tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrada para aquela gente simples. Alguns acreditaram nele, mas a maioria, não. E como notícia, se boa corre, a ruim avoa... O delegado do vilarejo logo mandou chamar o caboclo.
— Que história é essa de caveira que fala?
— Eu juro senhor delegado, que ela respondeu.
— Vou lá ver isso. Mas veja lá, se for mentira sua, e você me fizer bancar o bobo, eu mando te pendurar pelo pescoço, na primeira árvore que encontrar.
— Foi verdade, excelência – murmurou o moço.
Formou-se, então, uma grande comitiva. O caboclo ia adiante, a pé; seguido do delegado na sua mulona ferrada, guarda sol aberto, muito seu fresco. Atrás, as outras autoridades do vilarejo e, por fim, e os moradores curiosos.
Chegando à porteira, a comitiva estacou.  Ao verem a caveira, todos se calaram, tão maligna parecia. Trêmulo, o caboclo perguntou:
— Quem te matou, caveira?
A caveira nada de responder. Quieta estava e quieta ficou.
O caboclo pensou que talvez tivesse perguntado muito baixo. Em voz mais alta, novamente inquiriu:
— Quem te matou, caveira?
E a caveira "nadica".
— Quem te matooou, caveiiira? – gritava agora, com as veias do pescoço saltadas, e o pavor da forca apertando-lhe o coração.
— Quem te matou, caveira? Quem te matou, caveira?
E a caveira muito branca, luzindo ao sol, em silêncio. O moço perdeu a cabeça, começou a dar-lhe pontapés, jogando-a a distância; e, ia atrás dela de um lado para outro, suando, amaldiçoando.
— Quem te matou, caveira? Quem te matou, caveira? Quem te matou, caveira?
O delegado convencido da mentira do caboclo ordenou, então, aos soldados que lhe acompanhavam que pendurassem o sertanejo na árvore ao lado da porteira. Os soldados fizeram o nó corrediço, e o caboclo ficou enforcado à beira do caminho, enquanto a comitiva voltava espalhafatosa, mas sem animação, para o vilarejo.
Depois disso, tudo, ficou em silêncio na porteira. Não passava vivalma. E, assim, decorreu a tarde quente; e, assim, anoiteceu; até que, a caveira, que parecia não ter movimento, rolou um pouco sobre si mesma e, aos pulos veio, chegou até sob a árvore onde estava o caboclo enforcado. E ali, com o feio buraco das órbitas vazias virado para cima, exclamou:
— Eu não te falei que quem me matou foi a língua! ®Sérgio.

sábado, 26 de junho de 2010

O PRIMO DE MALASARTE

Era aniversário de Pedro Malasarte. Ele adorava uma festa, mas estava sem dinheiro para festejar o aniversário. Resolveu então, visitar o primo que tinha muito dinheiro e, certamente, lhe ofereceria alguma coisa, apesar de ser um tanto pão-duro. Chegando a fazenda do primo, este o recebeu com muito entusiasmado, não pela visita, mas por economizar assim a viagem a casa do aniversariante. Entraram e o primo foi logo oferecendo:
— Ó, primo Pedro! Tenho aqui uma broa, fresquinha, que sinhá assou. É tanta que vai durar a semana inteira.
— Broa de milho, primo?
— É sim, quer um pedaço?
— Não, primo - agradeceu Malasarte - basta um cafezinho.
— Mas é seu aniversário primo, eu reconheço que sou um pão-duro, mas um pouco de cortesia ao primo não faz mal! Se quiser é só pedir.
Malasarte novamente agradeceu, porém continuou só com o café. Continuaram proseando e, em meio à prosa, o primo lhe diz:
— Olha Pedro, ontem mandei matar aquele leitão capado que eu vinha engordando. Temos uma porção de torresmo e toucinho frescos que mandei preparar. Quer um pouco, pois tenho bastante?
— Não me diga isso! Tem muito mesmo?
— É o que lhe digo! Tenho bastante, quer?
— Nada primo, pode deixar, basta um cafezinho.
— Seja dito..., mas quando quiser é só pedir.
Continuaram proseando mais e mais, até que o primo fez nova oferta:
— Pedro, faz tempo que guardo umas garrafas de cachaça. Vamos tomar uns goles para comemorar?
— E é dá boa?
— Da melhor.
— Não primo, para mim basta um cafezinho.
— Não se faça de rogado que você tá em casa. Quando ficar com vontade é só pedir.
E assim, o primo de Pedro Malasarte, querendo lhe agradar pela passagem do aniversário e ao mesmo tempo percebendo que Malasarte não estava querendo lhe dar despesa, foi oferecendo um pouco de cada coisa que tinha na despensa. Malasarte ouvia e recusava; contentando-se só com o cafezinho. E continuaram nessa toada até que ouviram uma tímida batida na porta. O primo de Malasarte se levantou, abriu a porta e pegou de espiar; do lado de fora havia uma verdadeira multidão de conhecidos. O primeiro foi logo falando:
— Olha, desculpa a intrusão, mas ficamos sabendo que Pedro Malasarte estava por aqui e passamos somente para dar lhe dar os parabéns.
Desconfiado, mas sem ter como recusar, o primo convidou a todos para entrar, mas foi logo avisando:
— Meus amigos! Gostaria de lhes oferecer alguma coisa, porém... quase nada tenho na despensa...
Malasarte, deixando de lado o cafezinho e interrompendo o primo, falou:
— Primo, sabe aquele torresmo, aquele toucinho, aquela broa, a cachaça, a suco de laranja, a rosca, a linguiça, e tudo mais que você me ofereceu? Agora eu até quero um pouquinho, que já me cansei desse cafezinho que tomava pra modo de esperar o pessoal chegar...
Vosmecê calcule: o primo ficou aturdido, tonteou... parecia inté que estava para dar a alma a Deus; entretanto, uma vez que o oferecido estava em vigor, acabou bancando toda a festa. Pois foi assim que Pedro Malasarte teve a sua festança. ®Sérgio.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

E DÁ-LHE EUFEMISMO

A metáfora tem, praticamente, presença obrigatória em qualquer texto literário. Qualquer escritor que se preze faz uso das figuras de linguagem, algumas em maior número que outras. Uma figura pouco usada nos textos literários é o "eufemismo". A sua finalidade é substituir uma palavra grosseira, odiosa ou triste por outra palavra mais agradável, ou menos desagradável. Por exemplo, para atenuar a violência do verbo matar, Camões se valeu do eufemismo "tirar ao mundo" na conhecida passagem do episódio de Inês de Castro:
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso...” (Os Lusíadas, III, 123).
Apesar do seu acanhado uso na literatura, o eufemismo alcançou sua glorificação no ramo das profissões, principalmente naquelas tidas como mais grosseiras, odiosas ou ilegais. Pelo menos foi o que constatei nas leituras de artigos sobre profissões. Fique tão interessado pelo assunto que elaborei uma pequena lista (pinçadas de artigos e da internet) dos eufemismos usados para substituir o nome de antigas e tradicionais profissões. Por exemplo:
• Boy da Xérox é, agora, Especialista em Marketing Impresso.
• Faxineiro é: Supervisor Geral de Bem-Estar, Higiene e Saúde.
• Porteiro: Oficial Coordenador de Movimentação Interna.
• Vigia: Oficial Coordenador de Movimentação Noturna.
• Motorista de ônibus: Distribuidor de Recursos Humanos.
• Motorista de táxi: Distribuidor de Recursos Humanos VIP.
• Ascensorista: Distribuidor Interno de Recursos Humanos.
• Limpeza de banheiros: Diretora de Saneamento de Áreas.
• Frentista: Especialista em Logística de Energia Combustível.
• Peão de obra: Auxiliar de Serviços de Engenharia Civil.
• Office-boy: Especialista em Logística de Documentos.
• Motoboy: Especialista Avançado em Logística de Documentos.
• Distribuidor de santinho: Técnico de Marketing Direcionado.
• Garçom: Especialista em Logística de Alimentos.
• Camelô: Distribuidor de Produtos Alternativos de Alta Rotatividade.
• Gari: Técnico Saneador de Vias Públicas.
• Garota de Programa: Especialista em Entretenimento Masculino.
• Travesti: Dublê de Especialista em Entretenimento Masculino.
• Cafetão: Supervisor dos Serviços de Entretenimento Masculino.
• Ladrão: Técnico em Redistribuição de Renda.
Salve-se quem puder! ®Sérgio.

domingo, 20 de junho de 2010

A ARGUMENTAÇÃO NÃO SE CONFUNDE COM BATE-BOCA

A legítima argumentação, tal como deve ser entendida, não se confunde com o bate-boca estéril ou carregado de animosidade. Ela deve ser, ao contrário, construtiva na sua finalidade, cooperativa em espírito e socialmente útil. Embora seja exato que os ignorantes discutem pelas razões mais tolas, isto não constitui motivo para que os homens inteligentes se omitam de advogar ideias e projetos que valham a pena. (J.R. Whitaker. Apud Garcia Othon M. Comunicação em prosa moderna.)

sábado, 19 de junho de 2010

DOR SEM NOME

Jamais nesta vida e, possivelmente, na outra, me cansarei de louvar o poeta Gonçalves Dias. De poesia genuinamente brasileira, foi ele o nosso primeiro e jamais excedido poeta. Digo jamais excedido porque falo de um poeta comum, escrevendo sobre uma realidade comum a todos, na linguagem do homem comum.
Quando Gonçalves Dias viajou para Portugal, acompanhava-lhe seu pai. O poeta buscava instrução e seu pai a saúde. Pouco depois de ali terem chegado, morreu-lhe o pai, que já saíra do Brasil muito doente. Com quatorze anos, achou-se Gonçalves Dias só, em terra estranha. Esta circunstância, agravada pela distância da pátria e da mãe, aumentou-lhe a natural dor da perda do pai. No belíssimo poema autobiográfico “Saudades”, que dedicou à irmã, retirei este fragmento, que expressa os momentos de uma dor que não tem nome:
[...]
De quando sobre as bordas de um sepulcro
Anseia um filho, e nas feições queridas
Dum pai, dum conselheiro, dum amigo,
O selo eterno vai gravando a morte!
Escutei suas últimas palavras,
Repassado de dor! — Junto ao seu leito,
De joelhos, em lágrimas banhado
Recebi os seus últimos suspiros.
E a luz funérea e triste que lançaram
Seus olhos turvos, ao partir da vida,
De pálido clarão cobriu meu rosto
No meu amargo pranto refletido
O cansado porvir¹ que me aguardava!
______________________________
1 - o tempo que está por vir, por acontecer; futuro.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

CARA AMIGA...

Os olhos
Que olhas,
No espelho,
Não são teus olhos;
São os olhos
Da tua dor. ®Sérgio.

EU E MINHA ALEGRIA

Há uma perpétua distância entre mim e minha alegria; e quanto mais procuro vivê-la mais parece que ela se afasta de mim: como se os esforços que faço para encontrar a luz só servissem para tornar mais espeça e impenetrável à cortina que me separa dela. (Jacques Levigne)

O MATA-BURRO INSIDIOSO

O verso livre foi uma porteira aberta para os maus artistas. Mas há um mata-burro nessa porteira aberta. E o que se está vendo e muita perna quebrada nesse mata-burro insidioso. (Manuel Bandeira)

A MINHA ANIQUILAÇÃO

Eu acredito que quando morrer irei apodrecer e nada do meu ego sobreviverá. Mas me recuso a tremer de terror diante da minha aniquilação. A felicidade não é menos felicidade porque deve chegar ao fim, nem o pensamento e o amor perdem seu valor porque não são eternos. (Bertrand Russel, filósofo galês)

domingo, 6 de junho de 2010

O MANIFESTO TÉCNICO DA LITERATURA FUTURISTA

Em 1912, escritor Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), publica em Milão, o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, propondo:
    A destruição da sintaxe;
    O emprego do verbo no infinitivo;
    A abolição do adjetivo, do advérbio e da pontuação;
    A supressão dos elementos de comparação;
    Dispor os substantivos ao acaso, como nascem;
    A supressão do "eu";
    O uso de símbolos matemáticos e musicais.
Não seria sem razão afirmar que Marinetti abriu caminho para uma geração de escritores que empregaram uma estética liberada dos usos e da lógica tradicionais.
A respeito disso, ou melhor, da liberdade poética, Manuel Bandeira escreveu: "O verso livre foi uma porteira aberta para os maus artistas. Mas há um mata burro nessa porteira aberta. E o que se está vendo é muita perna quebrada nesse mata-burro insidioso." (M. Bandeira, in: Andorinha, Andorinha.) ®Sérgio.

VOCÊ SABIA QUE...

Na Antiguidade Grega, acreditava-se que o tamanho do nariz era proporcional ao dos órgãos genitais; portanto, narizes grandes eram sinônimos de virilidade. Virgílio, na "Eneida", descreve o costume de amputação da pirâmide nasal em homens e mulheres como punição ao crime de adultério.
Aristóteles (384-322 a.C.), em seu livro "A História dos Animais" escreveu que as pessoas com orelhas grandes e salientes tinham uma tendência para as conversas sem importância e fofocas.
O filósofo Diógenes de Apolônia (499–428 a.C) acreditava que os fluídos (menstruação) da mulher podiam enevoar um espelho de metal, tirar o corte de uma lâmina de aço, o brilho do marfim, enferrujar bronze e ferro, destruir colmeias de abelhas e enlouquecer cachorros.
Os gregos acreditavam que os seres vivos respiravam pelas orelhas. O filósofo Alcmaeon (século V a.C.) escreveu que "o sopro da vida entra pela orelha direita, e o sopro da morte, pela orelha esquerda". ®Sérgio.

sábado, 5 de junho de 2010

AS FORMAS DE ESCREVER

Cada indivíduo tem seu jeito de falar e de escrever, isto é, tem seu estilo. Mas, também, cada indivíduo, tem uma maneira, uma forma própria de melhor materializar seus pensamentos. Veja neste excerto a maneira escolhida por alguns dos mais consagrados escritores.
"Os escritores escrevem de forma anárquica: ao meio-dia, ao cair da tarde, à noite, no calor, nos cafés, na cama, sentados, deitados, de pé, passeando com um gravador, duas horas de vez em quando, 20 horas a fio... Nada de método, nada de receitas, nada que parece uma organização racional de trabalho.
Sim, escreve-se de dia ou de noite, de pé, sentado ou na cama, a lápis, com caneta, com máquina de escrever, ou mesmo com computador. Henry Miller confessava que na sua juventude escrevia de noite e que depois se acostumou a fazê-lo pela manhã, como Faulkner ou Moravia. De pé escrevia Hemingway, e na cama, Trumam Capote, Proust, Alexaindre... No escuro Gabriela Mistral... Em silencio total, Lamartine, Juan Ramón Jimenez... Com música ou no ambiente barulhento de um café, Ramon Gomes de La Serna, Breton, Valle-Inclán... Já vimos que Balsaque e Strindberg bebiam muito café, e este último fumava sem parar. Miller, Garcia Marques... com computador, o primeiro foi o autor de ficção Arthur Clarke, que muitos anos atrás foi morar numa ilha do Pacífico, de onde enviava seus romances num disquete, a seu editor... Deveria ser feita uma pesquisa para saber quantos escritores de hoje compõem seus textos diante de uma tela. Isso faria mais de um autor se revirar no túmulo. Flaubert, que levava quatro horas para completar uma frase e cinco dias para acabar uma página, enlouqueceria." (Nieto, Ramón. O Ofício de Escrever. Ed. Angra:2001)
E você, meu amigo, de que forma sente mais prazer para escrever? ®Sérgio.

terça-feira, 1 de junho de 2010

O GOSTO EM SER PISADA - Seleta de Prosa

"A terra aqui é pegajenta e melada, agarra-se aos homens com modos de garanhona. Mas ao mesmo tempo parece sentir gosto em ser pisada e ferida pelos pés da gente, pelas patas dos bois e dos cavalos. Deixa-se docemente marcar até pelo pé de um menino que corra brincando, empinando um papagaio. Até pelas rodas de um cabriolé velho que vá aos solavancos de um engenho de fogo morto a uma estação da Great Western." (Gilberto Freyre, A Cana da Terra; in Nordeste. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 42.)
Gilberto de Mello Freyre (1900—1987) foi sociólogo, antropólogo, escritor e pintor brasileiro; um dos grandes nomes da história do Brasil. ®Sérgio.