sexta-feira, 15 de julho de 2011

O SOL DA MEIA-NOITE

O poeta e diplomata João Cabral de Mello Neto (1920-1999), estava sempre a dizer que uma de suas grandes frustrações era não ter sido jornalista. Aos 16 anos foi rejeitado por um jornal. A rejeição lhe afetou tanto que, segundo ele, uma enxaqueca do lado esquerdo passou a lhe incomodar por 50 anos. Dor que médico nenhum foi capaz de detê-la.
Ouviu muitas recomendações de simpatias. Entretanto, atendeu a sugestão de um parente, que lhe recomendou um sanatório. "Foi uma internação que durou cerca de seis meses. Mas apesar disso – dizia – não produziu qualquer resultado positivo. Só deixou más lembranças".
Sem esperança de cura, o poeta apelou para a aspirina. Passou a tomar 10 comprimidos por dia; um a cada 4 horas, regularmente; o que o impedia de ter uma noite de sono inteira. Contudo, vivia agradecido a pírula, que passou a chamar de "sol artificial" e a homenageou no inusitado poema Num Momento a Aspirina:
Claramente, o mais prático dos sois,
O sol de um comprimido de aspirina;
De emprego fácil, portátil e barato,
Compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente por que, sol artificial,
Que nada limita a funcionar de dia,
Que a noite, não expulsa, cada noite,
Sol imune às leis de meteorologia,
A toda hora em que se necessita dele
Levanta e vem (sempre num claro dia):
Acende, para secar a aniagem da alma,
Quará-la, em linhos de meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
Da lente do comprimido de aspirina:
O acabamento esmerado desse cristal,
Polido a esmeril e repolido a lima,
Prefigura o clima onde ele faz viver
E o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
De uso interno, por detrás da retina,
Não serve exclusivamente para o olho
A lente, ou o comprimido de aspirina:
Ela reenfoca, para o corpo inteiro,
O borroso de ao redor, e o reafina.
Mas, 10 comprimidos ingeridos ao longo de 50 anos, só podia causar, ao trato digestivo, úlceras. Então chegou o dia que o poeta pernambucano necessitou de uma cirurgia emergencial. Mas, como há coisas que não tem explicação, João após a cirurgia, aos 66 anos, pode comemorar o desaparecimento da dor de cabeça. ®Sérgio.