"Os Reis Fernando e
Isabel de Espanha entraram para a história por duas razões: o
financiamento da viagem de Cristóvão Colombo e o apoio total às execuções em
massa ordenadas por Tomás de Torquemada, fins do século XV, em nome da Inquisição.
Tomás de Torquemada, inquisidor-mor da Espanha, mandou para a
fogueira, entre 1483 e 1498, nada menos do que oito mil pessoas acusadas de
feitiçaria."
A AGONIA
E MORTE
O escritor português Oliveira
Martins (1845-1894), em História De
Portugal (volume II) descreve, em todos os detalhes, o que foi o Auto de Fé
(cerimônia em que eram executadas as sentenças do Tribunal de Inquisição) que
teve lugar em Lisboa, no dia vinte de setembro de 1540:
Naquele dia, depois de
longos meses de cárcere privado e torturas, dezenas de condenados iriam ter
suas sentenças cumpridas na Praça da Ribeira. Desde as primeiras horas da manhã
o «povaréu» já tomava a praça, onde também já se encontravam as mais
importantes autoridades da corte e da igreja, inclusive o próprio Rei João III.
Os réus eram três mulheres condenadas
por bruxaria, dois homens cristãos-novos (que se converteram recentemente a
religião católica) e um médico acusado de feitiçaria. Terminada a leitura da
acusação, os penitentes, os cristãos-novos e as bruxas foram absolvidos de
serem queimados vivos. Gozariam o «privilégio
de serem estrangulados» antes que seus corpos fossem devorados pelas
chamas. Mas, o médico de São Cipriano, acusado de feitiçaria, seria queimado
vivo. O rei, a corte, o inquisidor se retiraram e os sinos continuaram a
dobrar, pausado e funebremente...
Os carvoeiros de
alabardas (machados), os verdugos (carrascos) de capuzes e os frades de
escapulário (representado por dois pedaços de pano bento, pendentes no peito,
ligados por duas fitas, sobre os quais está escrito o nome da Virgem) e
crucifixo na mão, ficaram junto dos condenados para queimá-los.
O povo cercou em massa
o lugar das pilhas quadrangulares de lenha, com os olhos ávidos e cheios de
cólera, contra esses réus e suas desgraças. Todos, menos o médico, morreram
garroteados (estrangulamento sem suspensão do corpo do supliciado, que
geralmente era mantido a um assento, preso a uma espécie de estaca, na qual, em
altura adequada, se prendia a corda destinada ao estrangulamento) e depois foram
queimados.
O médico-feiticeiro de
São Cipriano, porém tinha culpa maiores e fora condenado a ser queimado vivo.
Junto da pilha de lenha, o frade, com as mãos postas, pedia-lhe que por Deus,
se arrependesse; mas ele com o olhar inquieto e agitado de louco, virava a cara
e zombava. Subiu a pilha a correr, e do alto, sentado no banco, fazia caretas
de escárnio e visagens (expressões) irreverentes. O frade batia nos peitos, a
plebe rugia colérica. Os verdugos amarraram-no ao poste, e os carvoeiros
acenderam a fogueira, que principiou a crepitar.
Os rapazes e as
mulheres da Ribeira, salteando-o com paus e garranchos (anéis de metal com um
gancho colocado na ponta da madeira), arrancaram-lhe um olho. Atiravam-lhe
pedras, pregos e o que pudessem. Faziam-lhe feridas por onde escorria sangue:
tinha a cabeça aberta e um beiço rasgado. Entretanto, a chama já começava a
romper por entre os toros; e ele com as mãos, estorcendo-se, dava no fogo,
querendo apagá-lo; quando via, com o olho que lhe restava, vir no ar uma pedra,
mesmo amarrado, tentava desviar-se, para dela se livrar. Do vão do outro olho,
escorria pela face um fio de sangue. Isso já durava por mais de uma hora e
divertia muito o povo. Mas o vento soprava rijo do poente, da banda do rio e,
arrastava consigo as chamas; e por não ter fumos (fumaça) que o afogassem, o
condenado ficou três horas, vivo, a torrar, agonizando, contorcendo-se, em
caretas, e gritando: "ai... ai... ai..."
Cenas degradantes como esta, e outras ainda mais cruéis, iriam se
repetir milhares de vezes, desde que a Inquisição ou Santo Ofício foi
instaurado. Entre as vítimas da intolerância religiosa, não estariam apenas os
conversos, os heréticos, os cristãos-novos e os feiticeiros anônimos, mas
figuras do porte de um Galileu, de um John Huss, de um Giordano Bruno ou de uma
Joana d’Arc. ®Sérgio.
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Nota: Fiz adaptações linguísticas no texto de Oliveira Martins, para melhor
situá-lo no vernáculo de nossos dias.