sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

OS AMANTES DE AFRODITE

Segundo a Teogonia de Hesíodo¹, Cronos (tempo), o mais jovem dos Titãs, filho de Gaia (Terra) e de Urano (Céu), nutria intenso ódio por seu pai. Um dia, quando Urano veio se estender sobre Gaia, Cronos saiu de seu esconderijo, e com uma foice de dentes agudos castra o pai e lança ao mar o membro cortado que ejacula uma última vez. Da espuma nasce Afrodite (Aphroditê = espuma do mar), a ciumenta deusa da beleza, do amor, do desejo e da sexualidade. Possuía um cinturão mágico de grande poder sedutor, cujos efeitos eram irresistíveis.
Casou-se com Hefesto (deus do fogo), coxo e um dos mais feios deuses do Olimpo. Porém, nunca se satisfez em ser a esposa caseira e, por isso não hesitava em arrumar amantes.
Com Hermes (mensageiro dos deuses) deu à luz a um menino que tinha os dois sexos; recebeu o nome de Hermafrodito. Eros (deus da paixão) e Anteros (deus da ordem) foi o que lhe deu Ares (deus da guerra). Seduziu Dionísio (deus do vinho) com o qual teve um filho chamado Priápo (deus da fertilidade). Este era tão promíscuo que os deuses proibiram sua entrada no Olimpo. Outro que não resistiu a magia de seu cinturão foi Apolo (deus do Sol), teve com ele o filho Himeneu (deus do casamento).
Entretanto, sua verdadeira paixão foi o jovem, belo e mortal Adônis; no entanto Afrodite teve de disputar a companhia do jovem com Perséfone. Afrodite pediu a ajuda de Zeus que se recusou a ser o juiz, passando o caso para um tribunal presidido pela musa Calíope que sentenciou: Afrodite e Perséfone teriam o mesmo direito sobre Adônis. Ele passaria um terço do ano com cada uma delas, e o terço restante poderia descansar das deusas insaciáveis. No entanto, Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela os oito meses. Perséfone, ofendida, segredou a Ares que sua amante secreta iria trocá-lo por um vil mortal. Ares, sentindo-se ultrajado, tomou a forma de um javali e enquanto Adônis caçava, o matou com uma "chifrada" mortal. Afrodite teve com ele três filhos: dois mortais e um imortal.
 Outro caso famoso de Afrodite foi com o também mortal Anquises (príncipe troiano, primo do rei Príamo) com quem teve Enéias, herói da Guerra de Tróia.
As deusas Venus (romana), Freya (nórdica), Turan (etrusca), Ishtar (mesopotâmica), Inanna (suméria) e Astarte (mitologia babilônica), têm tudo a ver com Afrodite. ®Sérgio.
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1 - Há uma segunda versão sobre o nascimento de Afrodite: a de Homero. Entretanto, mais comum é a de Hesíodo.
Ajudaram na elaboração do texto: Bulfinch, Thomas, O Livro de Ouro da Mitologia: Histórias de Deuses e Heróis, 26º edição, Rio de Janeiro, 2002, Ediouro. / Gandon, Odile. Deuses e Heróis da Mitologia Grega e Latina. 1. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Imagem: O Nascimento de Afrodite (detalhe), óleo sobre tela de William-Adolphe Bouguereau.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

IRONIA OU ANTÍFRASE - Figuras de Linguagem

A Ironia (figura de pensamento e palavra) consiste em dizer o contrário do que pensamos, mas dando a entender o tom irônico, geralmente, com a intenção de obter uma reação do leitor, ouvinte ou interlocutor, ou seja, pertubá-lo. A ironia estabelece um contraste entre o que se pensa e seu conteúdo. O elemento positivo (conteúdo) seve para demonstrar, realçar o valor negativo (aquilo que se pensa); maneira pela qual a ironia se assemelha a antífrase, a sátira e a hipocrisia:
Veja que belo serviço você fez!
Embora esta expressão contenha a ideia de que a pessoa fez um bonito serviço, a ideia de beleza é desmentida pela ênfase dada ao termo [belo], evidenciando que a intenção do falante é oposta aquela que está expressa na frase.
Você, realmente, é muito esperto.
Esta frase, aparentemente, não contém nenhuma ironia. Mas, dependendo da situação em que ela é utilizada, da entonação que se der às palavras, ela pode ser altamente irônica. Este é um aspecto bastante importante da ironia: o fato de ela não estar nas palavras em si, mas "por trás" das palavras.
Como a ironia está especialmente exposta ao perigo da incompreensão, precisa ser muito bem construída para não passar uma ideia completamente oposta à desejada, transformando-se em uma "ironia sarcástica"; isto é, uma ironia ofensiva, insultante. O sarcasmo é sempre um deboche altamente crítico:
"Olá! Tu que destróis o templo de Deus e o reedifica em três dias, livra-te a ti mesmo descendo da cruz". (São Marcos).
Exemplos de ironia na fala:
Você parece realmente um santinho digno do altar.
Seu café está ótimo: fraco, frio e sem açúcar.
Não é encantador o trânsito de São Paulo?
Muito competente aquele candidato! Construiu viadutos que ligam nenhum lugar a lugar nenhum.
Exemplos de ironia em Literatura
"... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis..." (M. Assis)
"Moça linda bem tratada, / três séculos de família, /burra como uma porta: / um amor!" (M. de Andrade)
"A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças." (Monteiro Lobato) ®Sérgio.

sábado, 18 de dezembro de 2010

CURRÍCULO VITAE OU CURRICULUM VITAE?

Currículo vitae não existe. Em Latim, é curriculum vitae (abreviado CV). Significa "a trajetória (carreira, curso, percurso) da vida". O plural é curricula vitae.
A menos que queira dar muita "ênfase" a sua carreira profissional, "prefira" a forma aportuguesada currículo / currículos, que é bem mais fácil que a forma latina. ®Sérgio.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

QUAL A LÓGICA DO ARTISTA?

Uma noite dessas conversava com um amigo e não tenho mais lembrança de como a caiu em uma pergunta: qual a lógica do artista?
Ora, pois, há muitos conceitos que responderiam a essa pergunta (você mesmo deve conhecer alguns), porém, um deles, escrito pelo poeta Ronald de Carvalho (1893 – 1935), me ficou na memória. Aqui vai tal qual:
"A arte é uma aspiração à liberdade. O que nós, poetas, músicos, pintores, escultores desejamos é criar o nosso ritmo pessoal, é transmitir a nossa harmonia interior. Cada um de nós é um instrumento por onde passa a corrente da vida. Não queremos regras nem admitimos preconceitos. Não nos atraem as teorias especiosas. A lógica do artista não cabe nas fronteiras de um teorema, a lógica do artista é um problema cujos dados mudam a cada instante, e cuja solução varia de momento a momento. Para empregar uma simples e admirável imagem de Nietzsche, dançamos acorrentados, dançamos sobre as coisas sem que a ela nos adaptemos, mas, ao contrário, tirando do espetáculo do mundo a substância da criação. A obra de arte não repete, mas advinha e transforma a natureza. O artista é um transfigurador. Recebe a energia da vida e, em troca, lhe dá forma.”
Antes que você me compare a Ezequias querendo queimar os livros de Salomão, vale dizer que o que leu é a reflexão de um poeta e, por isso, não posso, absolutamente, garantir que ele esteja certo, embora concorde com ele. ®Sérgio.
"Olha a vida primeiro, longamente, enternecidamente,
Como quem a quer adivinhar...
Olha a vida, rindo ou chorando, frente a frente,
Depois deixa o coração falar."
(Poeta Ronald de Carvalho, 1893 – 1935)

DOS PROPÓSITOS AOS REMORSOS...

"Tu não és o senhor de teu amanhã, não adies o momento de gozar o prazer possível. Consumimos nossa vida a esperar e morremos empenhados nessa espera do prazer." (Epicuro de Samos, filósofo grego)
Dos propósitos aos remorsos, dos erros aos desejos, nós mortais, arrastamos por toda parte, nosso manto de loucura e dor. Nas infelicidades passadas, nas mazelas presentes e nas esperanças futuras não vivemos nunca, esperamos a vida.
Amanhã, dizemos; amanhã estaremos melhores, realizar-se-ão todos os nossos desejos. O amanhã vem e nos deixa mais infelizes. E da noite que passa, esperamos, ainda, o que nos prometeram os nossos mais belos sonhos.
Amanhã são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã – o triunfo ou a morte;
Amanhã - o prazer ou a dor.
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é senhor!
                        (Gonçalves Dias, Amanhã)
O homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...
As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá noutra jornada..."
Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;
E a vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia.
(Raul de Leoni, Legenda dos Dias, in Luz Mediterrânea.) ®Sérgio.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

ACONTECEU MESMO

Este causo é tão certo como se passou. Eu o extraí do arquivo da Folha de São Paulo (publicado em 15 de agosto de 1994). Vou lhes contar com minhas palavras. Foi o seguinte:
Em 1990, era prefeito da cidade de Itambacuri (MG) – não me pergunte onde fica – o Sr. Ataliba Magalhães e o seu vice, o Sr. Kemel Ali Modad. A prefeitura, na pessoa de Ataliba, estava às voltas com uma série de reclamações dos agricultores do município sobre uma liberação de crédito do Banco do Brasil. Daí, então, para resolver a situação, o prefeito e seu vice decidiram ir a Brasília.
Na antessala do diretor da Carteira Agrícola, a secretária ofereceu-lhes um café, para amenizar a espera. Como a copeira resolvera tirar uma folga naquele dia, ela mesma foi buscá-lo. Voltou trazendo o bule e as xícaras, porém percebeu que havia se esquecido do açúcar, retornou à copa.
Na volta, viu que os visitantes já haviam tomado o café.
— Ah, doutor Ataliba, o senhor preferiu tomar sem açúcar. É, por acaso, diabético?
E Ataliba:
— Não, eu sou de Itambacuri.
Educada, a moça segurou o riso. Virou-se para o vice e repetiu a pergunta:
— E o senhor, é diabético.
E o vice:
— Não, eu também sou de Itambacuri. Sou o vice dele.
Diante da gargalhada incontida da jovem secretária, os dois se entreolharam sem entender nadinha de nada.
Salve-se quem puder! ®Sérgio.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

QUAL O MELHOR POETA? Cartas ao Leo

Pergunta-me quem foi o melhor poeta do Romantismo. Meu amigo, não espere de mim uma resposta. Pois, essa é uma questão profundamente estranha ao meu sentimento de poesia. Entretanto é a pergunta que sempre se faz quando se fala em poesia e poetas. Qual é o melhor poeta? É o que sempre ouço e, provavelmente, ouvirei enquanto viver neste mundo de Deus.
Para comprovar esse fato, basta você adentrar num fórum virtual de amantes dessa arte, para constatar que é o que mais interessa a um grande número de participantes. Não se contentam enquanto não se define o melhor, ou os melhores entre eles e em nossa literatura.
Entretanto, podemos perceber, com meio olho mesmo, que nada é mais difícil que a tarefa de se fazer comparações poéticas. Mesmo nos mais variados concursos poéticos virtuais em que se fornecem temas, se estabelecem prazos e se impõem condições aos concorrentes, o julgamento pode falhar, porque há uma quantidade de pequenas coisas, porém importantes no seu todo, que perfazem a obra de cada autor.
Imagine, agora, os obstáculos a enfrentar, quando se trata de comparar a produção inteira de vários poetas de nosso Romantismo, com estilos, temperamentos e de pensamentos diversos. A não ser, é claro, que haja uma diferença extraordinária, mas muito extraordinária mesmo, que por si só se estabeleça de um poeta sobre os demais.
Essa mania de comparações é algo que não consigo absorver. A mim, desde que um poeta me toque à alma e a faça vibrar, o que me importa saber, se ele é maior ou menor que qualquer outro? Por isso faço coro com Amadeu Amaral¹ quando diz: "Sorrindo, e chorando, e meditando, e aprendendo, e recordando, percorro os jardins maravilhosos da poesia, colhendo aqui e ali as flores que no momento mais me atraem, sem curar muito de saber quem foi o melhor jardineiro".
Contudo a mania ira permanecer. E a pergunta há de sempre se repetir: Quem é o melhor poeta? Eu de mim, meu caro amigo, não saberia dizê-lo.
Mas essas reflexões são minhas e não posso, absolutamente, lhe garantir que estou certo. Cabe a você julgar-me.
RSérgio.
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1 - A. Amaral (1875-1929): poeta, jornalista, filólogo, prosador, conferencista, está entre os legítimos valores da literatura brasileira contemporânea.

OS CHIFRES DE MOISÉS

Tenho em meu arquivo de imagens, a famosa escultura representando Moisés, esculpida por Michelangelo. Como meu hobby é o entalhe, não raro, estou a admirá-la, até mesmo para retirar detalhes anatômicos.
Sempre que a visualizava, intrigava-me o porquê de Michelangelo ter esculpido o Moisés ornado com dois corninhos, ou melhor, com dois chifres. 
Dias atrás, lendo um artigo de José Francisco Botelho, intitulado “Quem Escreveu a Bíblia?”, e vinculado à revista Super Interessante (dezembro de 08), descobri a verdadeira razão dos dois chifrinhos. Você já sabia? Maravilha!... Mas para quem não havia reparado, ou para quem nunca apreciou a obra de Michelangelo, ou ainda para quem desconhece o motivo, vou, com sua permissão, repassar, a meu modo, o que li e descobri.
Após a conversão do imperador Constantino o eixo do cristianismo se deslocou do Oriente Médio para Roma; porém para completar a romanização da fé, faltava traduzir o Antigo e Novo Testamento para o latim. Coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde viria a ser canonizado São Jerônimo, esta missão. Sob ordens do papa Damasco, ele viajou a Jerusalém para aprender hebraico e realizar a tradução, que duraram 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina. Ela se tornou tão influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se tornaram clássicos. São Jerônimo, ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante do profeta Moisés escreveu em latim: cornuta esse fácies sua, isto é, sua face tinha chifres. Esse esquisito detalhe foi levado a sério por artistas como Michelangelo. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica Karan, que pode significar tanto chifre quanto raios de luz. Portanto, a tradução correta seria: sua face tinha raios de luz e não chifres, ou melhor, tinha o rosto iluminado.
Aí está a resposta do que me intrigava: um erro na tradução bíblica levada a sério pelo mestre Michelangelo. Não seria este mais um caso da chamada fé cega? Afinal, Miguelangelo devia ter-se questionado, pois quem tem chifres é o demônio. É ou Noé? ®Sérgio.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

OS HINOS HOMÉRICOS - Estudos Literários

Atribui-se ao poeta Homero a coletânea de uma série de poemas - de diferentes autores (devido às diversidades entre os poemas), épocas e regiões da Grécia - dedicados a várias divindades. Daí o tradicional título de Hinos Homéricos. Chegaram até nós por meio de muitos manuscritos. Entretanto, nenhum deles contém todos os hinos e a maioria está em más condições.
Esses hinos eram compostos com o mais antigo tipo de metro: o hexâmetro.   O mesmo hexâmetro que formavam os versos da Ilíada, da Odisseia, dos poemas de Hesíodo e de outros poemas épicos. Apesar dos hinos apresentarem diferenças no número de versos, todos tinham a estrutura dividida em três partes:
Inuocatio (invocação) - apóstrofe ao deus homenageado.
Pars Epica (parte épica) - descrição dos atributos divinos, eventualmente acompanhada do relato de um ou mais episódios de seu mito.
Precatio (súplica) - contém uma saudação final, uma prece e, muitas vezes, uma referência a outro hino ou poema cantado no festival.
De acordo com o historiador grego Tucídides (460-400 a. C.), eles eram recitados pelos rapsodos (declamadores ambulantes, que iam de cidade em cidade propagando a Ilíada e a Odisseia) a título de introdução, prelúdio ou proêmio (canto introdutório) de solenidades religiosas ou de festivais religiosos. A finalidade era, logicamente, a de invocar a divindade solenizada ou enaltecida na ocasião.
Os hinos não possuem a mesma extensão e, no que tange a qualidade, são desiguais. O mais extenso deles é o dedicado a Hermes (580 versos); o mais curto a Demeter (três versos). Os mais importantes são, naturalmente, os mais longos: a Demeter, a Apolo, a Hermes e a Afrodite. Entretanto, entre os curtos, há hinos notáveis como: a Dionísio (quando capturado pelos piratas); a Pã (sobre as atividades nos campos e nos bosques); a Gaia, a Helio e a Selene.
De todos os hinos da antologia apenas dois tem autoria reconhecida: o do mais longo hino dedicado a Apolo (um rapsodo chamado Cineto de Quios) e a Ares (o filósofo neoplatônio Proclo). Os demais são anônimos.
A antologia é formada por 33 hinos para 22 divindades:
Afrodite
Apolo
Ares
Ártemis
Asclépio
Atena
Deméter
Dioniso
Dióscuros
Gaia
Hélio
Hefesto
Héracles
Hera
Hermes
Héstia
Musa
Réia
Posídon
Selene
Zeus
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®Sérgio.
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Informações foram retiradas e adaptadas ao texto de: RIBEIRO JR., W.A. Portal Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em www.greciantiga.org. / Bernabé Pajares, Alberto (ed.). Fragmentos de épica griega arcaica. Biblioteca Clássica Gredos, 20. Madrid: Gredos, 1999.

A FESTA NO CÉU - Recontando Contos Populares

Espalhou-se entre a bicharada que haveria uma festa no céu e só compareceriam as aves porque podiam voar. Isso começou a fazer inveja aos animais e outros bichos incapazes de voar. Mas, teve um que não se deu por satisfeito, e dizia a todos que também ia à festa... Imagine quem? O sapo! Isso mesmo, o sapo! Logo ele, gorducho, que nem uma carreira era capaz de arriscar, achando-se capaz de aparecer naquelas alturas. Pois, afirmava que fora convidado e que ia, chovesse ou fizesse sol. Os bichos só faltavam morrer de rir. Calcule os pássaros.
Entretanto, o seu sapo tinha um plano. Na véspera, foi até a casa do urubu para uma boa prosa, depois de prosearem bastante, disse:
— Bem, amigo urubu, quem é coxo, parte cedo; vou indo porque o caminho é comprido.
O urubu respondeu:
— Você vai mesmo?
— É claro que vou! Inté lá, sem falta!
Entretanto, em vez de sair, o sapo deu uma volta, entrou no quarto do urubu e, vendo a viola em cima da cama, meteu-se dentro dela, e ali ficou, todo encolhido.
Chegando a hora de partir para a festa, o urubu, pegou na viola, amarrou-a a tiracolo e bateu asas para o céu, rru-rru-rru...
Cegando ao céu, o urubu arriou a viola num canto e foi tagarelar com as outras aves. O sapo botou um olho de fora e, vendo que estava sozinho, num pulo ganhou o chão, todo satisfeito.
Vocês não imaginam o espanto que as aves tiveram ao verem o sapo, todo cheio de razão, pulando no céu. Queriam todas, saberem, como ele conseguiu chegar ali. Porém o sapo desconversava, e pulava pra frente. A festa começou e o seu sapo tomou parte com grande animação. Lá pela madrugada, tendo ciência que só podia voltar do modo que veio, foi se esgueirando para fora do salão e correu para o lugar onde o urubu havia deixado a viola.
O sal saindo, acabou-se a festa, e os convidados foram deixando o céu, voando para suas casas. O urubu, não fez por menos, agarrou a viola e tocou para casa, rru-rru-rru...
Ia pelo meio do caminho quando numa curva, o sapo deu uma esticada de perna e o urubu, espiando para dentro da viola, viu o amigo sapo lá no escuro, todo curvado, feito uma bola.
— Ah! Amigo sapo! É assim que você vai à festa no céu? Deixe de ser confiado...
E naquelas alturas emborcou a viola e o sapo despencou-se para baixo, zunindo que nem fecha. E dizia na queda:
— Béu-béu, se eu desta escapar, nunca mais festa no céu...!
Bateu em cima das pedras, como uma jaca madura, espatifando-se todo. Ficou em pedaços. Nossa Senhora, com pena de seu sapo, juntou os pedaços, e o sapo viveu de novo.
Por isso o sapo tem o couro todo cheio de remendos. ®Sérgio.

MESTRE GALO E A COMADRE ONÇA - Recontando Contos Populares

Certo dia, a comadre Onça resolveu dar uma festa e convidou todos os bichos da região. O pagode devia começar ao primeiro sinal da manhã, e nessa hora, todos os convidados deveriam estar presentes.
Entre a bicharada o comentário é de que a festa seria de arromba, a melhor de que havia notícia até aquela data.
Chegando o dia do evento, a mata estava no maior burburinho. Nenhum dos bichos queria faltar ao convite, nem perder a hora.
A primeira luz do dia a casa da comadre Onça estava tão entupida de bicho que até parecia um formigueiro. Ninguém faltara, a não ser Mestre Galo. Tinha esquecido completamente do convite.
Não demorou muito para que a ausência do galo fosse notada. A Comadre se enfureceu, achou que aquilo era pouco caso sem desculpa, além de que, poderia arruinar sua majestade. Então, chamou a raposa e o gambá e lhes ordenou que fossem buscar o galo a sua presença.
Quando a escolta chegou ao galinheiro, pôs a galinhada em polvorosa e o Mestre Galo despertou sobressaltado, no poleiro.
— Vimos lhe buscar seu galo tratante - disse a raposa - da ordem da comadre Onça.  Ela lhe dá a honra de um convite para a maior festa da mata e você fica a dormir!
— Ah! É verdade! Responde o galo ainda espreguiçando. Tinha-me esquecido...
— Pois, é por isso, que a Comadre está furiosa com você.
— Perdão pessoal, perdão! O que ela quererá fazer de mim?...
— Ainda pergunta? Vai devorá-lo, se der a você essa honra, caso contrário deixará darmos cabo de você.
E dizendo isso, a raposa ameaçou destroçar todo o galinheiro de Mestre Galo caso ele se negasse a acompanhá-la, e ordenou-lhe:
— Vamos! Marcha! A comadre está a sua espera; e furiosa!
Mestre Galo não teve outro remédio senão acompanhar, muito do jururu, a escolta.
Chegando a casa da Comadre, a escolta e o preso compareceram diante de sua majestade comadre onça, que soltou um urro de raiva.
— Seu patife! Galo duma figa. Como então ousou desobedecer meu decreto, não se apresentado à hora marcada à minha festa? Vai pagar esse atrevimento.
— Saiba V. Comadre Onça que não foi por querer, mas por esquecimento. Perdão, perdão! Rogo-lhe o perdão ajoelhado aos seus pés.
— Você é um cabeça de vento!... Ia dar-lhe a morte, mas como se humilha, e, para não perturbar a alegria de minha festa, terá, de agora em diante como castigo de seu esquecimento, de não dormir além da meia-noite. Dormirá ao pôr do sol, mas a meia-noite cantará até as duas. E ao vir o dia cantará novamente, dando sempre sinal que está alerta. Se dormir e não cantar, você e sua família correm o risco de serem destroçados pelo gambá e pela raposa. Assim ficará punida tua vil memória.
Mestre Galo ficou muito contente com a solução achada pela comadre Onça e para não esquecer de que havia de cantar à meia-noite, cantou também ao meio-dia. E dessa data em diante começou a cumprir sua condenação, cantando pela madrugada fora.
Mestre Galo quando canta fecha os olhinhos para não esquecer de que tem de cantar outra vez e canta de dia para se lembrar de que tem da cantar de madrugada. ®Sérgio.
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Nota Sobre o Texto: Há duas variantes deste conto: a primeira, em que me baseei, em vez da onça é o leão que dá a festa; e, uma segunda, onde em vez do leão é o sol que dá a festa.