quinta-feira, 7 de outubro de 2010

UMA RELAÇÃO COM FORÇAS SOBRENATURAIS

Júlio Cesar Monteiro - um seminarista de boa prosa com quem convivi nos tempos do Colégio Arquidiocesano - acreditava que homenzinhos, de alguns milímetros de altura, viviam dentro de sua cabeça. Esses homenzinhos davam-lhe ordens expressas, centenas de vezes, horas seguidas, tanto de dia como de noite, até a exaustão. Tinha certeza de eram emissários do diabo para atormentá-lo, roubar-lhe a alma. Para mim - o único a quem confiou o segredo - eram meras alucinações. Para ele uma relação com forças sobrenaturais. No entanto, para além de suas alucinações e delírios, Júlio Cesar continuava o que era: um amigo culto e informado. "Minha mente é tão clara quanto à de qualquer outra pessoa", estava sempre a me dizer.
Os homenzinhos iam e vinham na cabeça dele. Por vezes, desapareciam por um bom tempo; porém, acabavam retornando ou ressuscitando. Em agosto de 1998, pouco tempo antes de nos dirigirmos ao refeitório, ele confidenciou-me que as vozes dos emissários do diabo tornaram-se um tormento insuportável.
Logo após ter me acomodado na cadeira do refeitório para o café da manhã, notei que o lugar reservado ao meu amigo Júlio Cesar estava vazio. Olhei para o coordenador (irmão Marista), através de seu vidro especial - sempre limpo a tal ponto que não se pode dizer que está ali – como que perguntasse se havia notado a ausência de Júlio. Ele balança a cabeça para mim em sinal de aprovação. Após o café, saímos a procura de Júlio Cesar e o encontramos caído no banheiro do dormitório; um filete de sangue escorria de seu ouvido direito. Rapidamente o levamos a enfermaria e ali ficamos aterrorizados. O meu amigo, num surto de delírio, havia introduzido, em seu ouvido, uma caneta (daquelas de invólucro metálico) ficando de fora apenas o espaço que ele utilizou para introduzi-la. Apesar da gravidade do ato, Júlio Cesar estava consciente e explicou que o fizera para calar as vozes dos homenzinhos. Mais surpreendente, ainda, foi o resultado da tomografia feita no hospital: apesar da caneta destruir seu órgão auditivo, não causara dano algum ao cérebro de Júlio. Fora isso, foi  retirada sem mais problemas.
Em outubro deixei o Arquidiocesano para voltar à civilização, a união do lar; e, nunca mais vi Júlio Cesar, que ficara em um hospital psiquiátrico a espera da salvação. ®Sérgio.
Nota sobre o texto: Ouvir vozes na cabeça, interrompendo os pensamentos, é tão comum que é considerado normal, segundo psicólogos. Uma pesquisa realizada na Holanda sugere que uma em 25 pessoas ouve vozes regularmente. Pesquisadores britânicos da Universidade de Manchester afirmam que, ao contrário da crença tradicional, ouvir vozes não é necessariamente um sintoma de doença mental. Algumas pessoas que ouvem vozes descrevem o evento como se alguém as chamasse pelo nome, mas quando elas vão atender descobrem que não há ninguém. As pessoas também ouvem vozes como se fossem pensamentos de fora entrando em suas mentes. Elas não têm ideia do que estas vozes vão dizer e podem até iniciar uma conversa. Estudos anteriores descobriram que as pessoas que ouvem vozes geralmente tiveram uma infância traumática. Entretanto, Júlio Cesar não se enquadra em nenhum desses quadros, ele era portador de esquizofrenia.

TORTURANDO A LETRA

Dia desses, enquanto aguardava minha vez no saguão do consultório de meu cardiologista, folheava a Revista Gloss (editora Abril), de 08 de 2010, quando à pagina 158, dei "de cara" com um artigo de Fabiana Faria que me interessou grandemente. Vou transcrevê-lo a seguir, porque acho que ele se enquadra nos propósitos literários e artísticos dos associados e frequentadores do blog:
TRECHOS DA MÚSICA BRASILEIRA QUE NEM FREUD EXPLICA
"Inda da Lambuja tem o carneirinho, presente na boca." (Acabou Chorare, de L. Galvão e Morais Moreira)
"Vaca das Divinas Tetas /... E o resto inunde as almas dos caretas." (Vaca Profana, de Caetano Veloso)
"Grávida de um beija flor / grávida da terra / grávida de um liquidificador." (Grávida, de Arnaldo Antunes)
"Ó, menina pinta lainhá, iê / Biriti-guiri me dá / Biriti-guiri me dê / Biriti-guiri me diz." (Me dá, Me dê, Me diz, de Tom Zé)
"A paixão / puro afã, místico clã de sereia / castelo de areia, ira de tubarão, ilusão." (Acaí, Dijavan)
"Abacateiro, sabes ao que estou me referindo / Porque todo o tamarindo tem seu gosto azedo." (Refazenda, Gilberto Gil)
"O brilho do meu canto tem o tom / E a expressão da minha cor? Vermelho!..." (Vermelho de Chico da Silva)
"Colombo procurou as Índias, mas a terra avisto em você". (All Star de Nando Reis)
"[...] O peito como bússola / Nenhum receio do lado negro da rua / E me guia na bubuia". (Bubuia, da cantora Céu)
"Meu amor eu sinto muito, muito, muito, mais vou indo / Pois é tarde, muito tarde e eu preciso ir embora / Sinto muito meu amor mas acho que já vou andando / Amanhã acordo cedo e preciso ir embora / Eu queria ter você mas acho que já vou andando / [...]" (Núcleo Básico, Ira)
Quintus Horatius Flaccus, Horácio para nós, filósofo e um dos maiores poetas da Roma Antiga, achava que "aos poetas e aos pintores sempre foi concedida a liberdade de ousar qualquer coisa". Tá certo seu Horácio, quem sou eu para contradizê-lo, mas esse pessoal aí de cima ousou demais. É ou Noé? ®Sérgio.