quarta-feira, 19 de maio de 2010

O DELEGADO, O BÊBADO E OS DIABOS - Recontando Contos Populares

Um amigo, que por alguns anos atuou como delegado em uma cidadezinha do interior, narrou-me esse "causo". Eu não sei se o acontecido é verdadeiro ou não; certo é que poderia ser. Mas “assim ou assado”, eu lhes conto, com minhas letras o que dele ouvi.
Havia, dentro do cemitério dessa pequena cidade, uma figueira "lotada" de frutos. Dois irmãos, seduzidos pelos figos, decidiram entrar no cemitério, na calada da noite, e pegar uma porção de figos. Pois então..., pularam o muro, aproximaram-se da figueira e o irmão mais velho subiu na árvore, enquanto o mais novo ficou embaixo para "catar" os figos que o mais velho deixava cair lá de cima.
E vêm, e vêm figos. De repente o irmão mais novo grita para o mais velho:
— Mano! Dois figos caíram do lado de fora do muro.
— Não tem importância, depois que a gente terminar aqui, pegamos os outros.
E vêm figos. Terminada a colheita, o mais velho desceu da árvore e com o mais novo, começou a repartir o resultado da coleta:
— Um pra mim, um pra você; um pra mim, um pra você; um...
E assim, cada qual ia colocando os figos em suas respectivas sacolas.
Segundo a crença de nossos sertanejos, a figueira é planta do diabo. É tido como certo que nas figueiras há reunião de demônios que ali fazem suas orgias. Então, um bêbado que passava do lado de fora do muro, escutou aquela conversa de "um pra mim, um pra você"; para ter certeza de que não estava imaginando coisas, parou e escutou novamente: "um pra mim, um pra você". Não deu outra, lançou-se numa carreira despinguelada até a delegacia da cidadezinha. Chegou quase sem fôlego, mas teve força suficiente para dizer ao delegado:
— Doutor, vem comigo! Os diabos estão no cemitério, debaixo da figueira, dividindo as almas dos mortos!
O delegado, suspeitando ser conversa fiada de cachaceiro, ameaçou-o de prisão caso não saísse, imediatamente, da delegacia. Ao que o bêbado respondeu:
- Juro Doutor! Juro por Deus que é verdade! Vem comigo!
Diante de tanta insistência, o delegado resolveu acompanhar o bebum. Foram até o cemitério, chegaram perto do muro e escutaram a repartição dos irmãos:
- Um pra mim, um pra você... Um pra mim, um pra você...
O delegado um tanto assustado exclama:
- Ora essa! É verdade! Eles estão dividindo as almas dos mortos!
Mal o delegado acabara de falar, os dois irmãos terminam a divisão dos figos; então o mais novo pergunta ao mais velho:
— Pronto, acabamos. E agora?
— Agora, a gente vai lá fora e pega os dois que estão do outro lado do muro…
O resto da história vocês podem imaginar, foi um tal de salve-se, quem puder. ®Sérgio.

REFLEXÕES SOBRE A CRÔNICA

"A crônica é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão de cozinha." (CÂNDIDO, Antônio. A vida ao rés do chão. Em: Para gostar de ler: crônicas, volume 5. São Paulo, Ática.
Antonio Candido de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 24 de julho de 1918) é poeta, ensaísta e professor. Recebeu os prêmios:  Intelectual do Ano 2007, conferido pela UBE - União Brasileira de Escritores, em 2008, e O Prêmio Juca Pato que agracia o intelectual que mais se destacou no ano anterior.
"A estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambiguidade é sua lei. A crônica tanto pode ser um conto, como um poema em prosa, um pequeno ensaio, como as três coisas simultaneamente. Os gêneros literários não se excluem: incluem-se. O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não o é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega a notícia, que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se perde no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros estes transcendem e permanecem." (PORTELLA, Eduardo. Visão prospectiva da literatura brasileira, 1979, p. 53-4. In: Vocabulário técnico da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1979.)
Eduardo Mattos Portella (Salvador, 8 de outubro de 1932) é crítico, professor, escritor, conferencista, pesquisador, pensador, advogado e político brasileiro. Pertence à Academia Brasileira de Letras.
®Sérgio.