terça-feira, 5 de maio de 2009

A ALMA QUE NÃO NASCEU - Recontando Contos Populares

Era uma vez um advogado muito velhaco e sabido como não havia outro. Ninguém o enganava e ele gabava-se de haver "engazopado" toda a gente com quem tinha negócios.

Era já sabido, naquela época, que alma de advogado não entrava no céu. Mas como o causídico era fino como um rato e não havia notícia de jamais haver perdido uma demanda, quando morreu foi bater à porta de S. Pedro.

O santo mal abriu à porta e deu de cara com ele, recuou espantado da tamanha ousadia.

— Não se espante, meu Santo, quero entrar no céu. Estou arrependido, venho suplicar a sua misericórdia.

— Impossível, respondeu São Pedro. Siga o teu destino, já que foi o maior velhaco de tua região.

Mas, o advogado tanto fez e aconteceu que o santo lhe dirigiu a seguinte proposta:

— Permito que entre no "quarto" das almas, às escuras, e da lá me traga a alma de Adão. Se conseguir, visto que é esperto, entrara no céu.

Assim se fez. E daí a pouco voltou o advogado com a alma de Adão.

São Pedro que queria apenas brincar com ele, ficou muito admirado daquele feito, e exclamou:

— Mas como conseguiu descobrir essa alma em meio de milhões de outras!?

O bacharel respondeu:

— É que não sou tolo, meu Santo. Estando todas as almas nuas, fui apalpando e quando encontrei a que não tinha umbigo, já sabia ser de Adão que, como reza a Sagrada Escritura, não nasceu. Não podia, por isso, ter umbigo.

São Pedro, nada tendo de responder, deixou o advogado entrar no céu. E foi assim que, pela primeira vez, entrou no céu uma alma de advogado (¹).

____________________

(1) Este conto foi parafraseado de uma lenda que corre em variantes na França, na Espanha, em Portugal e, em outros países da Europa.

A MÁXIMA DE SALVADOR DALI

Em 1936, Salvador Dali foi com um amigo, Maurício Heine, a uma exposição de pintura abstrata. Enquanto estavam na galeria, Dali não tirava os olhos de um canto da sala onde não havia nada exposto.
— Você parece estar evitando olhar para as telas – comentou seu amigo – parece estar atraído por algo invisível.
— É verdade, mas não tem nada de invisível. Não consigo afastar os olhos daquela porta. É de longe o objeto mais bem pintado desta galeria – respondeu-lhe Salvador Dali.
Maurice, visivelmente interessado nas obras expostas, não a tinha reparado. Mas agora, ao notá-la, viu que não tinha como negar a observação de Dali.
— Nenhum dos pintores — continuou Dali – que estão expondo nessa mostra seria capaz de pintar aquela porta; por outro lado, o pintor de paredes que lhe aplicou a tinta poderia melhorar qualquer dos quadros expostos que quisesse copiar.¹
Nada mais coerente com esse pequeno acontecimento do que o próprio conceito de Dali sobre o artista plástico: "O verdadeiro pintor é aquele capaz de pintar cenas extraordinárias em meio a um deserto. O verdadeiro pintor é aquele capaz de pintar uma pera, rodeado dos tumultos da história".
Assim foi Salvador Felipe Jacinto Dali; excêntrico e possuidor de uma aguçada visão artística que conferiu a sua obra o reconhecimento de uma das mais apuradas e audaciosas da pintura surrealista. ®Sérgio.
____________________
1 – Essa passagem da vida artística de Dali foi traduzida e adaptada a narrativa em terceira pessoa de Pensées et Anecdotes, Lê Cherche Mide, Paris.

A TRANSCENDÊNCIA DO PONTO VERMELHO

A minha obsessão artística é o entalhe em madeira; gosto que comecei a desenvolver quando, aos sete anos, ganhei de natal uma pequena bancada de carpinteiro, acompanhada de um kit de ferramentas para iniciantes (meninos). Comecei entalhando nomes próprios em plaquetas de madeira, que depois de prontas, presenteava amigos e "amigas".
Como aconteceu com Michelangelo - não que queira me comparar, Deus me livre! – o entalhe deu-me habilidade e visão suficiente para enveredar-me, amadoristicamente, pela pintura. Então, para adquirir conhecimento nas artes plásticas, passei a frequentar todas as exposições que me foram possíveis.
Numa dessas exposições, despertou-me a atenção, um quadro, que captava uma bela paisagem. Ao me aproximar para melhor estudá-lo, percebi uma mancha vermelha, que parecia ferir toda a sua harmonia. Conjecturando sobre a finalidade da mancha, permaneci por algum tempo diante da obra a ponto de ouvir outro admirador fazer o seguinte comentário:
Essa mancha prova que o artista não é só um pintor, mas também um filósofo.
E a moça que o acompanhava acrescentou:
Apesar da grande simplicidade que o quadro apresenta, o pintor parece estar consciente da transcendência que este ponto vermelho significa nesta paisagem encantada.
Fiquei estupefato com os comentários, porque, para mim, aquela mancha vermelha desarmonizava-se, completamente, com a bela paisagem. Ou será que minha visão artística estava “cega” a ponto de não enxergar a “transcendência do ponto vermelho”?
Graças a Deus, mais tarde, vim a conhecer o artista; e após suas explicações das técnicas empregadas na pintura, não resisti, e perguntei a ele qual era o significado da mancha vermelha na paisagem. Ele espiou a um lado e a outro do corredor, para verificar se estávamos, realmente, a sós, e disse-me:
Não diga nada a ninguém, mas quando acabei de pintar o quadro, meu filho de quatro anos entrou no atelier e cismou também de pintá-lo. Bem... a insistência foi tanta que dei a ele um pincel... e o resultado foi a mancha vermelha. Meu filho ficou tão feliz que não tive coragem de encobri-la.
Salve-se quem puder!!! ®Sérgio.