domingo, 6 de fevereiro de 2011

ÉRAMOS INFINITAMENTE FELIZES

Declina o sol no horizonte;
Alongam-se as sombras;
Perde-se na penumbra o contorno das coisas...
O vento rodopia pelas árvores;
Caem as folhas murchas;
Paira no espaço uma paz imensa...
Anoitece.
A solidão é quase completa.
Aprendi com meu pai a saborear, sobremaneira, a solidão e o silêncio que reinam na natureza quando o sol se põe. Nessas horas de mistério e calma, sentávamos debaixo de nosso arvoredo, e surpreendíamos os segredos da noite; os amores das árvores; os gemidos do vento. E éramos infinitamente felizes! ®Sérgio.

OS PALIMPSESTOS DE ARQUIMEDES

Primeiramente denominados códices rescripti (códices reescritos), os palimpsestos (do grego palímpsestos = riscar de novo) são obras cujos textos manuscritos (científicos e filosóficos da Antiguidade Clássica) foram apagados - para o reaproveitamento dos pergaminhos em que tinham sido escritos – a fim de receber outro manuscrito; geralmente orações ou literatura litúrgica. Esta prática era comum na Idade Média, sobretudo entre os séculos VII e XII, devido ao elevado custo do pergaminho. A princípio, a eliminação do texto era feita por meio de lavagem, mais tarde, de raspagem com pedra-pomes.
Na Renascença, os palimpsestos começaram a ser estudados, e no século XVIII se aperfeiçoaram processos de reconstituir, por meios químicos, o manuscrito originário ou o que dele restava. Assim, vários textos antigos foram recompostos, por exemplo: a República, de Cícero, descoberto sob o palimpsesto um Comentário de Santo Agostinho aos Salmos; fragmentos de Eurípides, Plauto e outros. Às vezes, porém, o reagente químico danificava para sempre os pergaminhos.
Um dos mais famosos palimpsestos é o de Arquimedes. Trata-se de uma cópia em 170 páginas, manuscrita em fina pelica de carneiro, da obra O Método, de Arquimedes de Siracusa, feito por um escriba bizantino do século X, e raspado no final do século XII ou princípio do século XIII para dar lugar a um livro de orações. A obra foi desmontada por um monge de Jerusalém, em 1229. Ele raspou o texto, cortou as folhas ao meio e as encadernou novamente, escrevendo orações e pintando iluminuras sobre o delicado pergaminho. Veja a ilustração acima: do lado esquerdo à iluminura e do direito o texto de Arquimedes.
A existência do Palimpsesto de Arquimedes era conhecida, mas o livro sumiu na confusão da I Guerra e só reapareceu em 1998, quando foi leiloado por 2,2 milhões de dólares na Christie’s de Nova York. A primeira tentativa de desvendar o manuscrito foi realizada por um pesquisador dinamarquês em 1906. Ele estudou o livro com lente de aumento e publicou uma versão incompleta com o que conseguira decifrar.
Desta vez, o palimpsesto acaba de ser inteiramente decifrado depois de oito anos de trabalho executado por um grupo de pesquisadores convocados pelo Museu de Arte Walters, em Baltimore, nos Estados Unidos. Os cientistas consumiram quatro anos só para desmontar o livro sem danificá-lo.  As páginas frágeis foram submetidas a duas técnicas de imagens. Uma delas consistia em examinar o material com raios-X especial, de modo a registrar o ferro contido na tinta usada pelo escriba do século X. Reorganizado - o resultado das técnicas - no computador, os cientistas extraíram, na íntegra, o texto perdido de sete ensaios de Arquimedes.
Por derivação de sentido, entende-se também por palimpsesto toda obra derivada de uma obra anterior, por transformação ou por imitação; ou seja, o mesmo que hipertexto. ®Sérgio.
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Imagem: Roger Viollet Collection / Getty Images

A MISSA DAS ALMAS DO PURGATÓRIO

Oláia era uma velha e solteirona lavadeira que vivia sozinha num pequeno cômodo na esquina da Rua José Antônio com a Rua Paraná. Não se conheciam parentes ou amigos dela. Diziam uns, que quando jovem, amara perdidamente e fora traída pela sua melhor amiga, que lhe roubou o noivo. Outros, que essa história, é uma história imaginada. Verdade mesmo, é que Oláia vivia santamente; pois, todas as manhãs, antes de ir para o rio lavar roupa, ia ouvir a primeira missa do dia.
Uma noite, dormia em seu pequeno quarto, quando foi despertada por toques de sinos; viu no quarto uma tênue claridade (não atinou que era o luar), levantou mais que depressa, certa de estar amanhecendo e os sinos anunciando a primeira missa. Vestiu-se, pôs à cabeça a bacia cheia de roupa e desceu à rua. Reinava tamanho silêncio que nem mesmo um cão ladrava ao longe. Ao chegar à igreja, notou que, ao contrário do que era natural, nessa manhã, muita gente entrava para ouvir a missa. Como de costume, arriou a bacia à porta da igreja e entrou para fazer suas orações.
A igreja estava cheia de devotos. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver todas aquelas fisionomias estranhas e silenciosas que pareciam imobilizadas no mesmo pensamento. Homens e mulheres continuavam a chegar e iam colocar-se a um lugar, ainda vazio, e não se ouvia enquanto andavam, nem o som dos passos, nem o roçar dos tecidos.
  Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Oláia viu o sacerdote caminhar para altar, precedido por dois sacristãos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem os ajudantes. Começa a missa. Estavam todos atentos. Porém, Oláia, por mais que tentasse, não conseguia ouvir o som dos lábios do sacerdote, nem o rumor da sineta, inutilmente, agitada.
A missa já ia pela metade, quando um cônego muito velho passou a recolher as esmolas, apresentando uma bandeja de cobre aos presentes, que ali deixavam cair sucessivamente moedas antigas. O velho cônego parou em frente de Oláia que procurou em um saquinho grosseiro de couro, uma moeda, sem nele encontrar. A lavadeira sentiu um frio que a fazia tremer sem saber por quê. O cônego vendo que ela nada possuía prosseguiu a coleta.
Quando acabou o ofício da missa, Oláia benzeu-se e saiu. Ao erguer a bacia para colocá-la na cabeça, tremia tanto que o peso era por demais e não conseguiu erguê-la. Os devotos saiam, uns atrás dos outros. Ela pediu a um deles que a ajudasse a levantar a bacia. Ele, porém, lhe respondeu com uma voz débil, muito fora do comum:
— Não posso, porque morri de tuberculose...
Pediu a outro, que lhe respondeu:
— Não posso, porque morri de enfarte...
E, ainda, a outro:
— Não posso, porque não tenho mais sangue...
No próximo ela não mais pede ajuda, porém, completamente assustada, pergunta:
— Meu bom amigo, diga-me quem são as pessoas que assistiam a essa missa silenciosa?
— Esses homens e essas mulheres são almas do purgatório, que ofenderam a Deus, pecando, mas sem maldade. Somos tão infelizes que um anjo se apiedou de nosso martírio. Com o consentimento de Deus, nos reúne todos os anos, à meia-noite, em nossas igrejas paroquiais; onde nos é permitido, durante uma hora, realizar uma missa...
O relógio da matriz dá uma pancada e os cabelos da lavadeira arrepiaram-se de medo. Então ela compreendeu que tinha assistido a uma missa de mortos e que o luar a tinha enganado. Fez o sinal-da-cruz e, em seguida, voltando-se para a alma penada, diz:
— Finado amigo, Deus vos tenha em sua graça!
E saiu a correr, assombrada. Trancou-se em seu quarto e não mais saiu. Enclausurada, emagreceu, definhou e entregou a alma a Deus. ®Sérgio.