sexta-feira, 5 de março de 2010

A ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS

Quando eu era jovem, morei por um tempo numa cidade muito pequena, onde não havia eletricidade e a noite desabava em escuridão completa. Nada era mais triste do que à noite; as casas fechavam-se e em breve as últimas luzes dos lampiões se apagavam.
Os moradores dessa cidade costumavam a realizar muitas práticas religiosas, e não é que poucos meses depois de minha chegada, fui surpreendido por uma delas.
Na noite da véspera do dia de finados, entre onze horas e meia-noite, os sinos da matriz principiaram a repicar enchendo o ar de vibrações... Aos primeiros repiques, os residentes da cidade e das terras mais próximas, começaram a se reunir diante da igreja. Olhava-se para a banda do mato, vinha gente. Olhava-se para o lado da igreja, vinha gente. Para onde quer que se olhasse, estava gente chegando. Gente a cavalo, de carro de bois e de a pé, todos vestindo túnicas brancas que cobriam até a cabeça.
Por volta da meia-noite, o ranger dos sinos cessou de todo e a vila parecia ter retornado a tranquilidade... Não fosse a aglomeração diante da matriz. Nisso o capelão aparece à porta tendo a frente o sacristão com uma grande cruz de madeira. O padre capelão rezou, acompanhado pelos presentes, uns versículos da oração dos mortos e deu início à procissão em rogo das almas do purgatório.
Uns levavam lanternas de velas de sebo, outros um berra-boi (um cordão com peso na ponta e que é girado rápido, provocando forte e sinistro zumbido) ou a matraca; todos, porém, de rosários nas mãos. O desfile, guiado pela grande cruz, tinha o objetivo de fazer orações para as almas sofredoras ou para os que morreram de acidentes (como picadas de cobra) ou de doenças.
Os fiéis, ora rezavam rosários, ora cantavam ladainhas e rogatórias extensas, que tinha por princípio os versos abaixo:
Alerta, alerta pecadores!
Acordai quem está dormindo;
Veja que o sono é irmão da morte
E a cama é a sepultura!
Nas ruas em que a procissão atravessava, as residências estavam hermeticamente fechadas, como era o costume. Em certo ponto da caminhada, uma janela se entreabriu e foi furiosamente alvejada por uma saraivada de pedras. Um caboclo robusto disse-me, de dentro de sua túnica, que o curioso - que conseguisse olhar a procissão - veria apenas um rebanho de ovelhas brancas, conduzido por um frade sem cabeça. Disse-me, ainda, que a procissão não podia parar para nada. Tinha de estar sempre em movimento. Se parasse na frente duma casa, era desgraça na certa para o dito cujo. Até tiro davam se havia ameaça de parar.
Saindo de uma viela estreita, o cortejo pegou, em campo aberto, a estradinha que acabava no velho cemitério da cidade. Lá chegando, todos, rezando orações em voz alta, entraram na morada dos mortos e detiveram-se ao pé do cruzeiro. Ali, embalados por cânticos de ladainhas e rogatórias, alguns fiéis iniciaram a flagelação penitencial (uma mescla de prazer e dor), com chicotes de couro de nove correias, conhecido como gato de nove rabos, porque têm nas pontas unhas de metal, semelhantes a dos felinos, e que causam graves ferimentos, deixando os penitentes em tratamento por vários dias. Os sinistros batidos das matracas e os gemidos dos flagelantes me causaram tremendo mal-estar.
Outras atividades aconteceram ao pé do cruzeiro... porém, me foi proibida a revelação, caso contrário, é desgraça na certa para mim; como não quero ver para crer, vou ficando de bico calado. Inté! ®Sérgio.