domingo, 30 de agosto de 2009

KHALIL GIBRAN: NA CIDADE DOS POBRES - Seleta de Prosa

Gibran Khalil Gibran, assim assinava em Árabe. Nasceu em 6 de dezembro na cidade de Bicharre, no Líbano. Gibran publica entre 1905 e 1920 sete livros em árabe (após sua morte é publicado o oitavo). Entre 1918 e 1931, produz mais oito livros, todos publicados em língua inglesa (após sua morte publicou-se mais dois). Morreu em Nova Iorque a 10 de abril. Foi enterrado em sua terra natal na vertente de uma colina, num velho convento cavado na rocha, onde sonhara ir viver seus últimos anos. Em cima do seu túmulo, esta simples inscrição: “Aqui, entre nós, dorme Gibran”.

O texto selecionado pertence ao seu sétimo livro Uma lágrima e um Sorriso, cujo original foi publicado em Árabe (1914). É composto pelos primeiros escritos árabes de Gibran (meditações, contos e parábolas) que foram publicados em um jornal local entre 1903 e 1908, quando tinha de 20 a 25 anos. O texto foi traduzido por Mansour Challita.

NA CIDADE DOS POBRES

Ontem, libertei-me do barulho da cidade e saí a caminhar por arredores mais tranqüilos até atingir um cume elevado que a natureza havia enfeitado com suas jóias mais belas. Diante de mim, estendia-se a cidade com seus arranha-céus e suas mansões, sob as densas nuvens de fumaça dos veículos e das indústrias.

Ante aquele lugar bucólico, me ponho a meditar sobre as atividades humanas. Achei-as, na sua maioria, mera agitação e fadiga. Esquecendo o homem, desviei o olhar para o campo, sede da glória divina e, não muito distante, vi uma necrópole, com seus túmulos de mármore rodeados por pinheiros.

Frente à cidade dos vivos e à dos mortos continuei a pensar. Pensava no movimento permanente e na luta incansável da primeira, e na quietude e paz que dominam na outra. Na primeira, lutam a esperança e o desespero, o amor e o ódio, a pobreza e a opulência, a fé e o ceticismo. Na outra a natureza acumula pó sobre pó, e neles ela cria, tranqüilamente, árvores e flores.

Enquanto me entregava a essas meditações, chamou-me a atenção uma multidão que avançava, vagarosamente, precedida por um elegante carro fúnebre engalanado por coroas de flores de muitas cores. No cortejo havia majestade, poder e homens de todas as classes. Era o funeral de alguém rico e poderoso: um cadáver que os vivos levavam para sua nova morada entre choros e lágrimas. Quando o cortejo atingiu o mausoléu e o ataúde era retirado de sua condução, consegui distingui-lo. Estava recoberto de elaboradas inscrições, desenhos e cercado por suntuosas coroas de flores. Agruparam-se todos a sua volta; um sacerdote tomou a frente de todos para orar, salmodiar e queimar incenso. Depois, sucederam-se os oradores e os poetas com suas elegias. Enfim, dispersou-se a multidão; voltou o cortejo à cidade, enquanto eu continuava a observá-lo de longe e a meditar.

Logo, o sol começou a descer para o poente, prolongando cada vez mais a sombra das árvores, e a natureza despiu pouco a pouco seu vestido de ouro. A um ruído, me virei e vi dois homens carregando um caixão de madeira comum, seguido por uma mulher em farrapos que segurava uma criança no colo e por um vira-lata miserável que olhava ora para a mulher, ora para o caixão. Era o enterro de um pobre. A mulher era sua esposa, que vertia as lágrimas da dor; a criança era seu filho, que chorava quando via a mãe chorar; o cachorro era seu amigo fiel, que pressentia o que se passava e andava com tristeza.

Chegou o pequeno cortejo ao cemitério; e logo foram enterrar o morto num canto distante, longe dos túmulos de mármore. Depois, afastaram-se num silêncio comovente. Observei-os, até desaparecerem por detrás das árvores.

Olhei, então, para a cidade dos vivos, e disse a mim mesmo: Ela pertence aos ricos e poderosos. Olhei então para a cidade dos mortos, e disse a mim mesmo: Ela também pertence aos ricos e poderosos. Onde está, ó Deus, a cidade dos pobres e humildes?

Ao fazer a pergunta, fitei as densas nuvens coloridas pelos últimos raios de sol e ouvi uma voz no meu interior responder: “Lá!”. ®Sérgio.

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